Ferrovias argentinas são reflexo do país


 Por Jurandir Soares


Correio do Povo - 27/02/12

Acidentes envolvendo trens na Argentina não constituem novidade. Antes da ocorrência dessa quarta-feira, tivemos um choque que envolveu dois trens e um ônibus, em setembro último, que deixou 11 mortos. Antes disso, outros episódios se sucederam, ocorrendo praticamente um acidente a cada ano, ao longo da última década. Se poderia dizer que os acidentes ocorrem porque a Argentina é um dos raros países da região que continuou a privilegiar o transporte ferroviário. O que não tem nada a ver. Na Europa, a maior parte do transporte, tanto de cargas quanto de passageiros, é feita por trem e não se tem notícia de acidentes. E neste caso não se trata de um país, mas de um continente que usa este tipo de transporte, que é considerado um dos mais seguros.
Então, fica o questionamento sobre o porquê dos acidentes na Argentina. Pois isso está ligado à decadência do país. Um país que já teve padrões europeus, mas que parou no tempo. A indústria argentina sucateou-se. Sucumbiu à concorrência dos produtos fabricados no Brasil e na China. O forte da Argentina sempre foi o agronegócio. Carne, lã e trigo de primeira qualidade. Mas também sempre foi forte na Argentina o populismo. O discurso enganador dos políticos. E isto segue hoje mais forte do que nunca, na figura de Cristina Kirchner, que conseguiu bater de frente com o agronegócio, enfraquecendo o carro-chefe da economia do país. O governo meteu a mão no dinheiro do setor produtivo para fazer proselitismo. Dinheiro usado para programas assistencialistas, deixando de lado os investimentos em infraestrutura. Como nas ferrovias, por exemplo.
Os serviços ferroviários sucateados e lotados, operados por empresas privadas e fortemente subsidiados pelo Estado, são marcados por acidentes e atrasos. As agências reguladoras dos serviços concedidos não cumprem sua atribuição de fiscalizar. Algo que conhecemos bem no Brasil. O último informe da Auditoria General de La Nación (AGN) é de 2008. Isto que naquela ocasião havia advertido que a concessionária do serviço, a Trens de Buenos Aires S.A. (TBA), não cumpria com os planos de manutenção e segurança operacional. Apesar da advertência, providências não foram tomadas e a agência reguladora tampouco voltou à carga. As vias e os vagões em uso são os mesmos de 50 anos atrás. As obras de atualização da ligação Onze-Castelar, iniciadas em 2008, se encontram paralisadas por falta de pagamento e de atualização de preços. Assim, ferrovias, como as indústrias do país, estão sucateadas. E só funcionam graças aos subsídios governamentais. Segundo o jornal Clarín, no último mês, a TBA arrecadou 12,7 milhões de pesos, enquanto que os subsídios desse período chegaram a 76,7 milhões de pesos mensais. E para manter esses subsídios em alta, os donos da TBA, os irmãos Claudio e Mario Cirigliano, não pouparam propinas para o secretário dos Transportes do kirchenismo, Ricardo Jayme, assunto que está agora nas barras da Justiça. Aliás, corrupção nos meios governamentais e políticos, outro assunto que conhecemos bem no Brasil, também é uma constante na Argentina. E com níveis que, seguramente, suplantam os brasileiros. Com o que, o resultado só podem ser acidentes como o dessa quarta-feira.

Sobre este artigo, enviei o seguinte comentário para o Correio do Povo:
"O jornalista Jurandir Soares, em sua crônica semanal (CP-27/02), abordou, com muita propriedade, a situação calamitosa por que passa a ferrovia argentina, o que não deixa de ser um retrato das estradas de ferro brasileiras. Em ambos os países, a desestatização se deu quase ao mesmo tempo (lá primeiro, para não fugir à regra: o Brasil é a Argentina ontem...). Sacramentada, em seguida começaram as constatações de que estávamos – brasileiros e argentinos – diante de uma decisão equivocada. No nosso caso, primeiro sangraram a Rede Ferroviária, acabando com os investimentos e com a normalização contábil – o Orçamento da União previa recursos para ressarcir a RFFSA pela manutenção de ramais antieconomicos para transporte de cargas e para subsidiar os trens de passageiros. Essa rubrica foi sendo retirada até ser extinta – para então justificar a barbárie que viria a seguir, a desestatização. E esta trouxe os problemas que estão no foco das atenções da sociedade: clientes mal atendidos, fechamento de ramais, patrimônio público dilapidado, via permanente mal conservada. E o pior: total falta de controle sobre isso tudo. E há quem afirme que a liquidação apressada da RFFSA serviu também para que se extinguissem créditos que se acumularam aos bilhões de  reais ao longo de muito tempo. Haja Brasil para tudo isso..".

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